Traduzido por: Lucas Carvalho, Vestanspjǫr
Esta é uma tradução autorizada de um artigo publicado por Tomáš Vlasatý, colega historiador e recriacionista histórico da República Tcheca, mentor do projeto Forlǫg e membro do grupo Marobud. Trata-se de uma entrevista com Rolf Warming a respeito dos escudos da Era Viking, especialmente na região da Dinamarca. Você pode apoiar o autor através de seu perfil no site Patreon.
Entrevista com Rolf F. Warming
Rolf Fabricius Warming é um arqueólogo dinamarquês cujos assuntos de seus estudos têm sido proeminentemente sobre combate e conflitos no passado, abrangendo desde a violência Mesolítica até a formação do estado organizado no início do período moderno. Rolf tem um mestrado em Arqueologia Marítima e atualmente está finalizando o seu projeto de dissertação para outro diploma de mestrado (em Arqueologia Pré-histórica), que é focado em escudos da Era Viking e práticas marciais. Ele possui patente de sargento do Exército Real da Dinamarca e também é mestre e instrutor-chefe de um sistema de artes marciais, de aulas e de seminários a nível nacional e internacional. Ele é o fundador da Combat Archaeology, uma organização comprometida com a pesquisa, interpretação material e outras questões sobre assuntos de combate e conflitos no passado.
Quantos fragmentos de escudos da Dinamarca da Era Viking nós temos encontrados e constatados?
Até o momento dessa entrevista nós temos exatamente 40 fragmentos de escudos positivamente identificados como sendo da Dinamarca da Era Viking (incluindo as regiões de Schleswig e Scania). Há um adicional de 3 artefatos variados que podem representar outros achados de escudos da Dinamarca da Era Viking, mas existem muitas incertezas quanto à natureza destes achados até o momento.
Como aparentava ser o escudo comum?
É difícil apresentar uma descrição simples de como o escudo comum aparentava ser. Os restos de escudos sinalizam designs bastante individualizados, tanto em termos de elementos de construção quanto de dimensões. Alguns escudos recebiam complementos de reforço e acessórios decorativos, enquanto outros escudos diferiam em termos de morfologia e dimensões de bossa. Vários tipos de escudo parecem ter sido usados durante a Era Viking. O escudo plano e redondo é o mais bem conhecido destes, mas parece que escudos redondos e convexos também estiveram em uso. É possível, também, que algumas formas de escudos pipa possam ter sido utilizados já no século X, embora seja convencionalmente compreendido que estes escudos apareceram por volta da época da Tapeçaria de Bayeux (aproximadamente 1070 d.C.), que contém as primeiras representações de tais escudos.
No entanto, sob o risco de perder rigor científico, as seguintes observações podem ser dadas afim de oferecer uma descrição básica para caracterizar a maioria dos escudos planos e redondos comuns: a grande maioria dos achados de escudos da Era Viking são escassos em metal. Muitas vezes os escudos só são reconhecidos pelos fragmentos sobreviventes da bossa, a peça central de metal do escudo, que muitas vezes constitui a única parte metálica do mesmo. Contudo, é possível que escudos construídos estritamente de material orgânico também possam ter existido, a julgar pelo escudo quase intacto de Tira, na Letônia, que é datado do século IX e foi equipado com uma bossa de madeira. As bossas de ferro dos escudos redondos da Era Viking eram usualmente presas na placa de madeira usando 4~8 rebites de ferro, sobre um buraco relativamente circular.
A placa do escudo consistia em cerca de 6~8 tábuas de madeira macia, que tinham uma espessura de não mais do que 10 mm no centro, sendo afiladas suavemente em direção às bordas do escudo. Nos casos em que os achados permitiram uma estimativa em diâmetros das placas do escudo, as medições forneceram uma variação entre 75 e 90 cm aproximadamente. Tipicamente, o cabo de madeira, que poderia consistir de madeira mais dura em comparação com as tábuas, se estendia através da placa do escudo e era rebitado em múltiplos locais. Por uma questão de economia e visando assegurar uma construção leve, era desejável que dois dos rebites que prendem a bossa do escudo também prendessem o cabo ao atravessarem a placa.
Muito provavelmente os escudos eram revestidos com uma camada de couro fino, aplicada na parte frontal da placa; uma camada de couro semelhante também poderia ser aplicada na parte traseira da placa do escudo. Uma borda de couro cru poderia ser costurada na extremidade do escudo com fios de algum material orgânico, talvez tendões ou cordões de couro. Mais tarde, escudos redondos do período Medieval parecem ter sido construídos de forma mais robusta e isso incluiu, entre outras coisas, mais reforços de ferro, a julgar pelo que as fontes históricas nos apresentam.
Nota complementar sobre a aparência dos escudos: nos comentários do artigo original, Rolf responde duas questões onde evidencia informações valiosas sobre os escudos:
Qual é o diâmetro aproximado do furo do escudo? – Com base no diâmetro interno de bossas registradas, o furo central dos escudos é de aproximadamente 9~14 cm de diâmetro. Essa variação está de acordo, inclusive, com as medidas registradas do escudo de Trelleborg.
Quanto pesava um escudo comum? – Difícil dizer. Meu escudo, que se baseia em achados arqueológicos escassos em metal, pesa 3,8 kg. Acho que é uma boa média aproximada para escudos sem muito metal.
E sobre escudos mais caros?
No caso de escudos redondos mais caros, a extremidade revestida de couro cru poderia ser ainda mais reforçada com a utilização de algumas braçadeiras de bronze ou ferro. Entretanto, em algumas descobertas excepcionais de Valsgärde e Birka, na Suécia, as braçadeiras cobriam partes maiores da borda do escudo ou até mesmo toda a sua circunferência. Outros escudos mais elaborados continham cabos com pontas decoradas com ornamentos de ligas de cobre ou de ferro, em formato de trevos, máscaras humanas e cabeças de animais, por exemplo. A parte traseira do longo cabo e sua empunhadura poderia ser reforçada com ligas de cobre ou de ferro e, algumas vezes, os cabos foram decorados com chapeamento de prata, laços de fitas, padrões trançados e máscaras humanas. Ocasionalmente, a empunhadura ou todo o cabo do escudo poderia ter sido construído de metal. Apenas em casos excepcionais a bossa do escudo continha um formato mais elaborado (tal como um rebordo dentado) ou continha a concavidade adornada com metais não-ferrosos (tais como tiras de bronze finas).
Embora alguns destes acessórios fossem mais elaborados, não significa que fossem acessórios supérfluos ou puramente decorativos como, em contraste, ocorrera nos períodos anteriores constatados através da arqueologia. Os acessórios tinham uma função e eram em, grande parte, usados no intuito de proporcionar uma “força adicional”. Ainda sobre o uso de tantos acessórios elaborados, parece que os escandinavos da Era Viking não evitavam a oportunidade de exibir excessivos elementos decorativos. As máscaras humanas, as cabeças de animais, os laços de fitas e padrões trançados parecem ter sido recorrentes temas decorativos. Tanto as fontes históricas quanto os microscópicos vestígios de cores indicam que as próprias placas dos escudos recebiam decorações e que isso não se limitava aos escudos mais caros.
Ao longo da história, armas foram dadas como presentes e, a julgar tanto pelos registros arqueológicos quanto pelas fontes históricas, não há dúvidas de que os escudos também eram vistos como objetos de grande valor, podendo estes serem ainda mais realçados com belas pinturas e decorações. Associar um escudo de alta qualidade com a mitologia ou com realizações ancestrais, evidentemente o tornaria um objeto de grande admiração e um presente muito decente.
Como os escudos poderiam ser usados?
Dado o desenvolvimento e a coexistência de diferentes tipos de escudos e diferentes tipos de bossas, bem como as discrepâncias regionais em preferências de armamento ofensivo, é claro que não há uma única resposta que possa ser dada sobre a forma como eram utilizados os escudos. Assim como é, de fato, muito difícil falar sobre algo chamado “estilo de luta viking“. Ao invés disso, os materiais sugerem que os estilos de combate variaram entre as regiões da Escandinávia e no decorrer de toda a Era Viking, expressando, inclusive, influência de outras culturas, como a dos carolíngios. O que também complica as coisas é que os aspectos funcionais dos escudos podem ser examinados em vários níveis, incluindo o operacional, o tático e os níveis estratégicos de guerra. No entanto, é evidente que qualquer inferência feita em qualquer aspecto funcional de escudo deve ser fundamentada no conhecimento sobre como o escudo era usado a nível individual.
Vamos focar no escudo plano e redondo comum – que normalmente se pensa ao caracterizar o combate da Era Viking – e como ele era utilizado no contexto de combate em ambientes confinados. Na Era Viking, assim como nos sistemas de combate militar e de artes marciais do mundo moderno, muito provavelmente existiam várias abordagens de combate. No entanto, a construção dos escudos planos e redondos nos permite examinar alguns dos fundamentais princípios subjacentes que podem ter regido predominantemente o uso desse escudo em combate. O escudo plano e redondo era um escudo fino e leve que era segurado pela empunhadura central, sem quaisquer enarmes (cintas que podem prender o escudo mais firmemente no antebraço). Isto, juntamente com o furo central (protegido pela bossa), permitia que a mão segurasse o escudo em um ponto muito próximo do seu centro de massa, com o formato circular do escudo facilitando a maneabilidade. A fragilidade do escudo exigia justamente essa maneabilidade, já que o usuário do escudo teria que fazer uso do conceito da deflexão se ele não quisesse que o escudo quebrasse rapidamente. Ao invés de uma mera defesa passiva, o escudo era usado ativamente. Isto era feito com o escudo na posição horizontal de frente para o corpo adversário ou em um ângulo oblíquo com a borda virada para a frente. Em ambos os casos, todavia, a experimentação prática com espada afiada e escudo plano e redondo indica que existe uma forte correlação entre o grau de deflexão à medida na qual o escudo é ativamente utilizado sendo empurrado para a frente. Se esta forma de utilizar o escudo não contribuiu para o comportamento agressivo notório dos vikings, é, pelo menos, muito alinhada à imagem legada destes soldados de infantaria leves e agressivos, que refletia a natureza dos combatentes escandinavos durante a maior parte da Era Viking.
Em suma, o que temos é um escudo muito usado ativamente. Em situações defensivas o escudo poderia ser empurrado para a frente ou manobrado de maneira que desviasse a entrada de golpes; em situações ofensivas, onde o usuário do escudo atacava, o escudo poderia agir como uma arma impressionantemente ofensiva, podendo ser usada para criar aberturas para um golpe de machado ou de espada, especialmente através de pancadas poderosas com a borda. Assumindo que a construção do escudo plano e redondo não era diferente para nenhuma situação, os escudos eram usados com estes princípios tanto no âmbito do combate singular quanto no combate em formação; não há, que eu saiba, nenhuma evidência de uso de escudo estático como suporte, mesmo quando se fala de conceitos como “shield wall” (a famosa muralha de escudos). O caso é diferente no restante do período Medieval, onde escudos mais robustos foram usados. Curiosamente, há também algumas evidências que sugerem que essa tradição de escudos usados ativamente continuou além da Era Viking, se fundindo com algumas técnicas medievais de espada e broquel.
No vídeo abaixo, a Combat Archaeology faz uma demonstração de arqueologia experimental com um escudo plano e redondo da Era Viking:
O Vestanspjǫr agradece ao amigo Tomáš Vlasatý pela iniciativa da entrevista e pela oportunidade de trazermos este trabalho à lingua portuguesa, bem como agradecemos ao mestre Rolf Warming por compartilhar este rico conteúdo com a comunidade recriacionista internacional.
Vestanspjǫr thanks the friend Tomáš Vlasatý for the initiative of the interview and by our opportunity to bring this work to the Portuguese language, as well as we thank the master Rolf Warming for sharing this rich content with the international reenactment community.
– Artigo original no blog Forlǫg